Galileu Galilei: viu a Terra girando e o sol nascer quadrado. Ou será que não?


Para o católico nunca deve ser demais defender a Igreja das injustiças históricas cometidas contra ela. Por isso, sem qualquer motivo especial, só porque estou concluindo a brilhante quadrilogia de livros “Guia politicamente incorreto”, reproduzo a seguir trechos do capítulo de um deles, que traz interessantes informações – devidamente documentadas – sobre esse que é um dos chavões mais clássicos do arsenal de acusações maliciosas que o secularismo deita sobre a Santa Madre Igreja: o caso do julgamento de Galileu Galilei.

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O texto abaixo é um recorte do interessantíssimo capítulo “Galileu Galilei” do excelente livro Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo, de Leandro Narloch (@lnarloch). Recomendo efusivamente que comprem o livro, não só para terem acesso ao texto de Galileu na íntegra, mas porque há mais uma penca de outras boas narrações e informações “lado B” das grande figuras da História. A obra tem ainda irmãos, dois de autoria dele (embora um seja de co-autoria): Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil e Guia Politicamente Incorreto da América Latina (leram isso, pjoteiros?). Além deles, há também o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, de autoria de Luiz Felipe Pondé, que segue a mesma linha.

Atualização: Depois da publicação deste artigo, outros títulos dentro da mesma série foram lançados, dentre eles o Guia Politicamente Incorreto da Economia e o Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes da República que valem a pena conferir.

Então, para que já fique claro: eu recebi autorização do autor para publicar esse retalho do capítulo; não é uma tentativa maliciosa de costurar trechos desconexos afim de validar o “meu lado” da história, insisto que leiam o capítulo na íntegra (pela quantidade de reticências entre parêntesis, dá pra ter uma noção de quanta coisa teve que ficar de fora desse recorte). Um diferencial dessa série de livros é justamente ser rica em referências bibliográficas. Praticamente todas as citações estão documentadas.

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Galileu, um bom católico

A história que geralmente se conta sobre Galileu é esta:
Galileu Galilei, matemático nascido em Pisa no ano 1564, foi um dos primeiros astrônomos a fazer observações com o telescópio. Suas descobertas o levaram a defender a teoria do polonês Nicolau Copérnico[1], para quem a Terra girava em torno de si própria e do Sol, este, sim, o centro do Universo. Galileu defendeu tão ardorosamente o heliocentrismo que atraiu a fúria da Igreja Católica, então irredutível em relação à idéia de que a Terra era imóvel, como pareciam atestar os textos bíblicos. Aos 69 anos, Galileu foi considerado suspeito de heresia pela Inquisição, julgado e condenado a negar suas opiniões, sob ameaça de torturas e morte na fogueira. Ficou preso até morrer, em 1642.
Há um bocado de verdade nessa história. Mas, como acontece em muitos casos, há apenas uma parte da verdade.
(…)
Antes de Galileu, Copérnico entusiasmava cardeais e o papa

Em 1512, Copérnico foi convidado pelo Vaticano, junto a outros filósofos naturais de reputação, a opinar sobre a reforma do calendário juliano. (…) Após o convite ele publicou um pequeno livro, o Commentariolus,”pequeno comentário”. Era o esboço da ideia de que a Terra girava sem parar em torno de si própria e do Sol.
O livrinho tratava somente de uma hipótese, sem comprovações matemáticas; (…) Em 1533, um secretário particular do papa Clemente VII, o austríaco Johann Albrecht von Widmansadt, explicou as ideias de Copérnico ao pontífice e a alguns cardeais. A conversa parece ter agradado a todos, pois, em retribuição à palestra sobre o heliocentrismo, o papa presenteou o secretário com um manuscrito grego do ano 200.
(…)

Filósofos, cientistas e matemáticos também desprezaram Galileu

(…) Em 1610, Galileu fez a sua principal descoberta: avistou quatro satélites que giravam em torno de Júpiter, provando que a Terra não era o centro dos movimentos das estrelas. Pôde assim questionar algumas ideias consagradas dos astrônomos. Se os satélites de Júpiter aconpanhavam o planeta quando ele girava em torno do Sol, o mesmo poderia acontecer com a Lua.
Essas descobertas derrubavam crenças antigas, “mas não eram suficientes para fundamentar o sistema de Copérnico”, como afirma o filósofo e historiador italiano Paolo Rossi. (…)
Diante dessa gigantesca mudança de pensamento, a maior parte dos astrônomos da época de Galileu ficou em cima do muro, adotando a posição moderada do dinamarquês Tycho Brahe. Astrônomo mais famoso da época, Tycho desenhou uma teoria que agradava os dois lados. Ele concordava com Copérnico quanto ao fato de que os planetas moviam-se em torno do Sol, mas dizia que o Sol e a Lua giravam em torno da Terra, parada no centro do Universo.(…) O inglês Francis Bacon, um dos pais do método científico, preferia a teoria de Tycho Brahe à de Copérnico. (…)
Até mesmo Galileu espezinhou descobertas que hoje consideramos geniais. Em 1609, ele recebeu o revolucionário livro de Johannes Kepler, o Astronomia Nova. Na obra, Kepler mostrava que as órbitas dos planetas tinham forma de elipse e ainda ensinava como calcular a velocidade dos planetas de acordo com sua posição. Galileu, porém, não passou do prefácio do livro, e morreu acreditando que as órbitas eram circulares. “Não sei se pela minha pouca capacidade ou pela extravagância do estilo do autor, [Kepler] se pôs a escrever coisas que nem outro, nem talvez ele mesmo, consegue entender.”
(…)
Um século depois, quando Isaac Newton concluiu que a força de atração é proporcional à massa dos corpos, matemáticos brilhantes também o ridicularizaram. O alemão Gottfried Leibniz acusou Newton de acreditar em milagres e magias, já que defendia a existência de uma força de atração entre os astros sem nenhuma ligação material entre eles. (…)
Não era fácil acreditar no heliocentrismo. Por isso, quando Galileu rodou as cortes italianas mostrando para todos as imagens do telescópio, muita gente franziu a testa.
(…)
Sem conseguir convencer os astrônomos e os acadêmicos, Galileu recorreu ao outro grande centro de astronomia do século 17: o Colégio Romano. Criado por jesuítas, esse centro de estudos abrigava homens eminentes como o padre Clávio, considerado na época, com algum exagero, o maior de todos os matemáticos. Os dois andavam trocando cartas, e o padre, no começo cético quanto às descobertas com o telescópio, estava se convencendo. As conversas com o jesuítas parecem ter sido amigáveis, já que, em abril de 1611, o Colégio Romano organizou uma sessão solene em homenagem a Galileu.
Durante o discurso oficial dessa cerimônia, o jesuíta belga Odo van Maelcote disse a todos que Galileu era “digno de ser citado entre os astrônomos mais célebres e felizes”(…) É isso mesmo: enquanto professores universitários, matemáticos e filósofos tentavam derrubar Galileu, padres o homenageavam.

Diversos teólogos ficaram ao lado de Galileu

(…) O eremita agostiniano Diego de Zúñiga, professor de teologia da Universidade de Salamanca, mostrou, já em 1584, algumas passagens da Bíblia que sugeriam a movimentação da Terra, como em Jó 9, 6: “Ele [Deus] é o que sacode a Terra e a move fora de seu lugar, fazendo tremer suas pilastras”. Para o teólogo, trechos como esse ficavam mais bem explicados tendo em vista as ideias de Copérnico.(…) Galileu também entrou no debate teológico. Escreveu duas cartas que foram divulgadas ao público, como era costume na época. Defendeu que, se a Bíblia era fruto do verbo divino, a natureza era ainda mais. (…) O astrônomo chegou a dizer que “em disputas sobre fenômenos naturais, [as escrituras] deveriam ficar com o último lugar”. Em outras palavras: a experiência deve falar mais alto que a letra no papel sagrado.
Galileu, entretanto, se via e agia como um bom católico. Seguia a tradição de separar questões terrenas e espirituais que vinha dos grandes teólogos da história da Igreja.
(…)Por muito tempo os esforços de Galileu para conciliar a Igreja com as descobertas foram considerados um disface, um esforço de estilo e decoro. Os historiadores que faziam essa consideração aceitavam de cara a premissa de que ele e a Igreja estavam em lados opostos. Só recentemente alguns estudiosos sugeriram que os esforços de Galileu, talvez, tenham sido sinceros e que seu objetivo era tornar a Igreja mais aberta às descobertas, tanto quanto impor as ideias de Copérnico. “Galileu se sentiu compelido a fazer tudo o que podia para prevenir um erro por parte da Igreja que poderia colocar a sabedoria dela em descrédito”, afirmou o historiador Stillman Drake. (…)

O verdadeiro julgamento de Galileu

O livro que levou Galileu a ser condenado pela Igreja, em 1633, deveria se chamar Sobre o Fluxo e Refluxo do Mar. Por sugestão do Papa Urbano VIII, ganhou um título melhor: Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo.(…) Ao autorizar a publicação do livro, Urbano VIII pediu ao astrônomo que tratasse das duas teorias sobre a Terra apenas como hipóteses. Representantes da Inquisição revisaram o texto, solicitaram emendas e recomendaram a publicação. No meio desse processo, porém, Galileu deu um jeito de manter a versão favorável ao movimento da Terra. O papa encarou essa atitude como traição – e decidiu repreender o astrônomo. Um ano depois da publicação do livro, a Inquisição chamou Galileu para uma conversa em Roma.

Galileu chegou a Roma ciente de ter irritado o papa, por isso já de início se ofereceu para alterar o conteúdo do livro. Com medo da fogueira, sugeriu até dar aulas somente sobre a teoria de que a Terra estava imóvel no centro do Universo, pois havia adotado “a muitíssimo verdadeira e indubitável opinião da estabilidade da Terra e a mobilidade do Sol”. Os inquisidores não acreditaram nele o o condenaram por suspeita de heresia – suspeita que se tornaria heresia de verdade caso ele não renunciasse a suas opiniões. Também o condenaram à prisão na sede do Santo Ofício e a um “exame rigoroso” de suas crenças, o que parecia significar tortura.

Cópias dessa condenação foram enviadas a paróquias de toda a Europa, difundindo a ideia de que Galileu foi torturado e encarcerado. O filósofo Voltaire falaria no século seguinte sobre os “sofrimentos de Galileu nas masmorras da Inquisição”, visão comum ainda hoje.

Galileu foi injustamente humilhado, mas não foi mantido em masmorras nem torturado pela Inquisição. A tortura mais comum em Roma no século 17 consistia em juntar os punhos da vítima atrás das costas e amarrá-los com uma corda, que passava por uma roldana presa ao teto. O torturador, segurando a outra ponta da corda, poderia içar a vítima até deixá-la pendurada no ar. Considerando que Galileu tinha 69 anos, não teria resistido a essa experiência, e não há sinal de sequelas nos documentos da época. “Normas da Inquisição livravam velhos e doentes (além de crianças e mulheres grávidas) da tortura, e Galileu não era só velho como sofria de artrite e hérnia”, diz o filósofo Maurice Finocchiaro.

Em Roma, o astrônomo se hospedou na casa do embaixador da Toscana e, dois meses depois, passou a dormir no Santo Ofício – não nas celas dos interrogatórios, mas nos aposentos de um oficial. Tinha acesso ao pátio do edifício e ajuda de assistentes e empregados. Dois dias após a condenação, já estava na Vila Médici, um palácio que hoje abriga a Academia da França em Roma. Depois viajou a Siena, onde se hospedou por cinco meses na casa de um fã, um arcebispo que o consolou e o incentivou a retomar o interesse pelos estudos. (…)

 

(…) A Reforma Protestante fazia quase todo o norte da Europa escapar dos braços da Igreja. Em reação, os católicos convocaram o Concílio de Trento, na tentativa de pôr ordem na casa, reafirmar a autoridade do papa, aumentar a perseguição a hereges e anunciar que só a Igreja poderia interpretar a Bíblia. Numa época dessas, tudo que o Vaticano não queria era contestar visões tradicionais do mundo.

A Igreja concordou com as ideias de Galileu, mas apenas 200 anos depois. Em tempos de reação aos protestantes, as coisas que ele dizia eram problemáticas demais. (…)
Já em 1741, assim que as descobertas de Newton chegaram às igrejas italianas, houve um modesto reconhecimento do erro. Um abade organizou quatro volumes com a edição completa das obras de Galileu. A edição foi autorizada pela Inquisição e impressa pela própria Igreja, no Seminário de Pádua. Em 1761, sem alarde, a Igreja retirou da lista de livros proibidos aqueles que falavam do movimento da Terra.

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Por fim, deixo o pedido para que nenhum leitor católico tome bronca do autor do livro. A legítima diversidade, em consonância com os ensinamentos do Papa Francisco, consiste em prestar ouvidos generosos, sem preconceitos e discriminações que prejudiquem a busca da verdade.


[1] Nicolau Copérnico, inclusive, foi cônego da Igreja Católica, função de grande envolvimento com as atividades litúrgicas de uma paróquia ou catedral.

2 pensamentos sobre “Galileu Galilei: viu a Terra girando e o sol nascer quadrado. Ou será que não?

  1. Nunca tinha visto um explicacao sobre o caso gallileu com tanta clareza do q desse site,parabens!!! agora,eu gostaria d fazer 1 sugestao p/ vc falar sobre o index q a igreja criou.

    • Olá, Matheus.
      No link de onde tirei as duas últimas imagens há boas informações adicionais.
      Agradeço a sugestão. Surgindo oportunidade, posso comentar sobre o index. Se algum colega blogueiro tiver escrito a respeito, posto o link aqui.

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